segunda-feira, 14 de março de 2016

DOR É COISA HUMANA.
A essência da existência é a dor.
Schopenhauer
Há uma dor visceral que atordoa os seres humanos. Por ela alguns morrem ou se tornam zumbis, na tentativa de se escapar dela.
É a dor das dores, a rainha da perdição humana. A que pode minguar o corpo, paralisar pernas e braços e ao mesmo tempo a que dá sentido e ritmo à vida. A dor de que falo é mais forte que a do parto, maior que o medo da morte. Quando do parto passamos meu amigo, destinados estamos a encontrá-la.Game over!
Somos apresentados à dita cuja ao menos uma vez na vida e há aí um divisor de águas ou integração dos rios, como quiser experimentar.
Alguns ao se depararem com ela se protegerão em clonazepans, não a sentirão ou sentirão na medida que aguentarem e por fim vão seguir suas vidas, anestesiados. Outros mergulharão profundamente, nus, encantados e apavorados com tão inexata sensação. Não voltarão. Ficarão perdidos no labirinto da dor, lutarão contra ela e não com ela. Será tão penoso reconhecê-la parte que a superfície não mais fará sentido, esses se associarão à morte. Meu respeito a infinitude de suas dores.
E existirão aqueles que a experimentarão sem qualquer anestésico, completamente despidos de si mesmos mergulharão nas águas dessas dores, entregues. Há algo nesses que me intriga, quanto mais a experimentam e sofrem, se aprofundam. Arriscam-se em outros níveis. Redescobrem-se, sombrios e luminosos. Desconhecem-se e sofrem. Se amedrontam ao descobrir que deles fazem parte outros e que esses outros podem lhes tomar a vida.
Mergulhadores livres que elegeram a coragem como a atitude primeira do viver, respeitam o medo e reconhecem a inconsequência. Fluem entre o profundo e a superfície, tomam fôlego e tocam o íntimo de suas águas, o núcleo das suas dores.
Imergem noutra profundidade. De novo, se entregam. Se tivessem a consciência da textura do útero de suas mães talvez a sensação seria a de se estar lá. De serem abraçados, no limite entre a proteção e a expulsão, no corpo frágil e forte onde se modela o humano, na escuridão-núcleo de onde emerge a essência de ser quem somos.
Saltar do penhasco corpo para um mergulho na alma é sim doído mas é nesse deslocamento que descobrimos qual é o unguento que alivia a dor existencial. Nós produzimos a dor e a cura.
Somos os humanos, seres corajosos que reconhecem suas dores, crescem com seus sofrimentos e tornam-se plenos.
Débora Rabelo 


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

MUDE
Nada é permanente, exceto a mudança. 
Heráclito. 


Mas comece devagar, porque a direção
é mais importante que a velocidade.
Mude de caminho, ande por outras ruas,
observando os lugares por onde você passa.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Descubra novos horizontes.

Não faça do hábito um estilo de vida.

Ame a novidade.
Tente o novo todo dia.
O novo lado, o novo método, o novo sabor,
o novo jeito, o novo prazer, o novo amor.
Busque novos amigos, tente novos amores.
Faça novas relações.
Experimente a gostosura da surpresa.
Troque esse monte de medo por um pouco de vida.
Ame muito, cada vez mais, e de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas, de atitude.

Mude.
Dê uma chance ao inesperado.
Abrace a gostosura da Surpresa.

Sonhe só o sonho certo e realize-o todo dia.

Lembre-se de que a Vida é uma só,
e decida-se por arrumar um outro emprego,
uma nova ocupação, um trabalho mais prazeroso,
mais digno, mais humano.
Abra seu coração de dentro para fora.

Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.

Exagere na criatividade.
E aproveite para fazer uma viagem longa,
se possível sem destino.
Experimente coisas diferentes, troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você conhecerá coisas melhores e coisas piores,
mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento, a energia, o entusiasmo.

Só o que está morto não muda!
Edson Marques


Foto: http://www.iheartfaces.com

sábado, 22 de agosto de 2015

DUELO DE BUDA


Um dia Sidarta Gautama, o Buda, estava no jardim de Anathapindika, na cidade de Jetavana, Índia, quando lhe apareceu um Deva (espírito da natureza) em figura de brâmane e vestido de roupas brancas como a neve, e entre ambos se estabeleceu o seguinte “duelo”:

O Deva:
– Qual é a espada mais cortante?

Ao que Buda respondeu:
– A palavra raivosa é a espada mais cortante.

– Qual é o maior veneno?
– A inveja é o mais mortal veneno.

– Qual é o fogo mais ardente?
– A luxúria.

– Qual é a noite mais escura?
– A ignorância.

– Quem obtém a maior recompensa?
– Quem dá sem desejo de receber é quem mais ganha.

– Quem sofre a maior perda?
– Quem recebe de outro sem devolver nada é o que mais perde.

– Qual é a armadura mais impenetrável?
– A paciência.

– Qual é a melhor arma?
– A sabedoria.

– Qual é o ladrão mais perigoso?
– Um mau pensamento é o ladrão mais perigoso.

– Qual o tesouro mais precioso?
– A virtude.

– Quem recusa o melhor que lhe é oferecido neste mundo?
– Recusa o melhor que se lhe oferece quem aspira à imortalidade.

– O que atrai?
– O bem atrai.

– O que repugna?
– O mal repugna.

– Qual é a dor mais terrível?
– A má conduta.

– Qual é a maior felicidade?
– A libertação.

– O que ocasiona a ruína no mundo?
– A ignorância.

– O que destrói a amizade?
– A inveja e o egoísmo.

– Qual é a febre mais aguda?
– O ódio.

– Qual é o melhor médico?
– O Buda.

O Deva então faz sua última pergunta:

– O que é que o fogo não queima, nem a ferrugem consome, nem o vento abate e é capaz de reconstruir o mundo inteiro?

Buda respondeu:
– O benefício das boas ações.

Satisfeito com as respostas, o Deva, com as mãos juntas, se inclinou respeitosamente ante Buda e desapareceu.

(Trecho extraído do livro Buda – Aquele que Despertou)





terça-feira, 4 de agosto de 2015


Das Vantagens de Ser Bobo


O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. 

O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando." 

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia. 

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. 

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. 

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?" 

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! 

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz. 

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem. 

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). 

Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! 

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.


Clarice Lispector



segunda-feira, 27 de julho de 2015



Olhos Parados

Manoel de Barros

"Ah, ouvir mazurcas de Chopin num velho bar, domingo de manhã!

Depois sair pelas ruas, entrar pelos jardins e falar com as crianças.

Olhar as flores, ver os bondes passarem cheios de gente, e encostado no rosto das casas,
sorrir…

Saber que o céu está em cima.

Saber que os olhos estão perfeitos e que as mãos estão perfeitas.

Saber que os ouvidos estão perfeitos. Passar pela Igreja.

Ver as pessoas rindo. Ver os namorados cheios de ilusões.

Sair andando à toa entre as plantas e os animais.

Ver as árvores verdes do jardim. Lembrar das horas mais apagadas.

Por toda parte sentir o segredo das coisas vivas.

Entrar por caminhos ignorados, sair por caminhos ignorados.

Ver gente diferente de nós nas janelas das casas, nas calçadas, nas quitandas.

Ver gente conversando na esquina, falando de coisas ruidosas.

Ver gente discutindo comércio, futebol e contando anedotas.

Ver homens esquecidos da vida, enchendo as praças, enchendo as travessas.

Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.

Lembrar da cidade onde se nasceu, com inocência, e rir sozinho.

Rir de coisas passadas. Ter saudade de pureza.

Lembrar de músicas, de bailes, de namoradas que a gente já teve.

Lembrar de lugares que a gente já andou e de coisas que a gente já viu.

Lembrar de viagens que a gente já fez e de amigos que ficaram longe.

Lembrar dos amigos que estão próximos e das conversas com eles.

Saber que a gente tem amigos de fato!

Tirar uma folha de arvore, ir mastigando, sentir os ventos pelo rosto…

Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.

Gostar de estar ali caminhando. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.

Pensar nos livros que a gente já leu, nas alegrias dos livros lidos.

Pensar nas horas vagas, nas horas passadas lendo poesias de Anto.

Lembrar dos poetas e imaginar a vida deles muito triste.

Imaginar a cara deles como de anjos. Pensar em Rimbaud, na sua fuga, na sua adolescência, nos seus cabelos de ouro.

Não ter idéia de voltar para casa. Lembrar que a gente, afinal de contas, está vivendo muito
bem e é uma criatura até feliz. Ficar admirado.

Descobrir que não nos falta nada. Dar um suspiro bom de alívio, olhar com ternura a criação e
ver-se pago de tudo.

Descobrir que, afinal de contas, não se possui nenhuma queixa.

Que está sem nenhuma tristeza para dizer no momento.

Lembrar que não sente fome e que os olhos estão perfeitos.

Para falar a verdade, sentir-se quite com a vida.

Lembrar de amigos. Recordar um por um. Acompanhá-los na vida.

Como estão longe, meu Deus! Um aqui. Outro lá. Tão distantes …

Que fez deste o destino? E daquele? Quase vai se esquecendo do rosto de um … Tanto tempo!

Ter vontade de escrever para todos os amigos.

Ter vontade de lhes contar a vida até o momento presente.

Pensar em encontrá-los de novo. Pensar em reuni-los em torno de uma mesa.

Uma mesa qualquer em um lugar que a gente ainda não escolheu.

Conversar com todos eles. Rir, cantar, recordar os dias idos.

Dar uma olhada na infância de cada um. Aquele era magro, Venício…

Aquele outro era gordo, Abelardo … Aquele outro era triste.

Ah, não esquecer jamais deste último, porque era um menino triste.

Como andarão agora? Naturalmente, mais velhos.

Talvez não conhecerei alguns. Naturalmente, mais senhores de si,

Imaginar todos eles com ternura. Pensar nos mais fracos, naqueles, naturalmente, para quem
o mundo deve ter sido menos bom.

Pensar que eles já vêm. Abrir os braços.

Procurar descobrir, no mundo que nos envolve, alguma voz que tenha acento parecido.

Algum andar que lembre o andar longínquo de algum deles…

Ah, como é bom a gente ter infância!

Como é bom a gente ter nascido numa pequena cidade banhada por um rio.

Como é bom a gente ter jogado futebol no Porto de Dona Emília, no Largo da Matriz.

E se lembrar disso agora que já tantos anos são passados.

Como é bom a gente ter tido infância e poder lembrar-se dela.

E trazer uma saudade muito esquisita escondida no coração.

Como é bom a gente ter deixado a pequena terra em que nasceu.

Ter fugido para uma cidade maior, conhecer outras vidas.

Como é bom chegar a este ponto de olhar em torno.

E se sentir maior e mais orgulhoso porque conhece outras vidas…

Como é bom se lembrar da viagem, dos primeiros dias na cidade.

Da primeira vez que olhou o mar, da impressão de atordoamento.

Como é bom olhar para aquelas bandas e depois comparar.

Ver que está tão diferente, e que já sabe tantas novidades…

Como é bom ter vindo de tão longe, estar agora caminhando,

Pensando e espiando no meio de pessoas desconhecidas

Como é bom achar o mudo esquisito por isso, muito esquisito mesmo.

E depois sorrir levemente para ele com os seus mistérios …

Que coisa maravilhosa, exclamar. Que mundo maravilhoso, exclamar.

Como tudo é tão belo, tão cheio de encantos!

Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais pequenas, e descobrir em todas uma razão
de beleza.

Agradecer a Deus, que a gente ainda não sabe amar direito,

A harmonia que a gente sente, vê e ouve.

A beleza que a gente vê saindo das rosas, a dor saindo das feridas.

Agradecer tanta coisa que a gente não pode acreditar que esteja acontecendo.

Lembrar de certas passagens. Fechar os olhos para ver no tempo.

Sentir a claridade do sol, espalmar os dedos, cofiar os bigodes,

Lembrar que tinha saído de casa sem destino, que passara num bar, que ouvira uma mazurca,

E agora estava ali, muito perdidamente lembrando coisas bobas de sua pequena vida.




Foto: http://www.worldcompassion.tv

segunda-feira, 20 de julho de 2015


Poeta



um poeta
sente a morte todos os dias
morre de dor
morre de amor
morre de alegria
e de alergia

o poeta tem a vida todos os dias
todo o tempo
tudo no tempo
renasce quando morre
vive a morte do que já foi vida

o poeta é sul e norte
é aqui e lá longe
tem no corpo cicatrizes
humanas
força da existência
mundana

vibra junto
é energia
de tudo
o poeta é tudo
é o todo
é deus

deus é poeta
o poeta é um humano, deus
é luz e breu
é vida
talvez morte

só não tem a sorte
do unguento divino
curador dos buracos de mundo

da morte.


Débora Rabelo





terça-feira, 14 de julho de 2015







O sertão é do tamanho do mundo.
João Guimarães Rosa



Um casal de leões-marinhos cansados do frio do ártico se mudou para o sertão de minas. Dizem que se encantaram pelos escritos de Guimarães Rosa e fizeram a escolha: 

- Vamos especular as ideias desse sertão.

E assim foi, desceram para o atlântico e seguiram rumo. Quando cansados pegavam carona em estrangeiros cargueiros, deslumbrados com as belezas do Sul.

Chegaram à costa brasileira num outono, final da década de 60, em Alagoas. Embarcaram no Velho Chico e seguiram para minas. Em Pirapora pularam fora. Peixes amigos indicaram outros rios, chegaram no coração do sertão.

De lá, bem de longe viram um brilho diferente. Eram pedras reluzentes.

Se encantaram por elas, nada de gelo. Pedras quentinhas que vieram do útero da mãe terra. Foram acolhidos e aquecidos por elas.

Pedras se tornaram.

Hoje protagonizam uma das mais belas cenas de amor no caminho da cidade de pedras. O beijo de amor delas. Em minas, no sertão, perto da cidade de pedras.


Débora Rabelo







 Foto: Débora Rabelo